No cruzamento entre estatísticas públicas e biografias ocultas, o novo e-book “Mapeamento e análise dos dados estatísticos do emprego das pessoas com deficiência no estado de São Paulo” lança luz sobre os contornos, fissuras e contradições de uma política que, embora instituída há mais de três décadas, ainda caminha entre o formalismo legal e o obstáculo estrutural. A Lei de Cotas — como se convencionou chamar o artigo 93 da Lei nº 8.213/91 — impõe às empresas com cem ou mais funcionários a obrigatoriedade de reservar de 2% a 5% de seus postos de trabalho para pessoas com deficiência. Entretanto, o que dizem os dados reais sobre a aplicação dessa política no estado mais populoso do Brasil? Quantas dessas vagas, de fato, são ocupadas? Quais deficiências estão mais presentes no mercado de trabalho? E que relações se estabelecem entre escolaridade, tipo de deficiência, remuneração e território?
Este livro nasce do trabalho minucioso do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho e Pessoas com Deficiência (NTPcD), do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit), vinculado ao Instituto de Economia da Unicamp. A obra sistematiza os achados da pesquisa realizada ao longo de 2021 e 2022 a partir da base da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), que abrange o universo formal do mercado de trabalho brasileiro. Com mais de 200 páginas, o material busca não apenas quantificar, mas interpretar o funcionamento da Lei de Cotas no estado de São Paulo, identificando padrões de inclusão e exclusão que se perpetuam mesmo sob a vigência da política afirmativa.
Ao percorrer os dados de 2016 a 2021, o estudo revela que o percentual de ocupação das cotas no estado de São Paulo manteve-se, em média, abaixo dos 50%, evidenciando uma distância considerável entre o dispositivo legal e a sua efetivação. Se o número absoluto de vínculos empregatícios formais de pessoas com deficiência cresceu até 2019, os anos seguintes — marcados pelos efeitos da pandemia de Covid-19 — trouxeram quedas importantes, com destaque para 2020. Mesmo com leve recuperação em 2021, o cenário não retornou aos patamares anteriores.
Outro destaque da análise está na prevalência das deficiências físicas, que representam mais da metade dos vínculos, contrastando com a sub-representação de pessoas com deficiência intelectual, visual e múltipla. A composição etária também chama atenção: a maioria dos vínculos empregatícios concentra-se entre pessoas com mais de 40 anos, o que pode refletir tanto a barreira de entrada para os mais jovens quanto a permanência dificultada nos postos de trabalho. As desigualdades salariais são igualmente evidentes, com pessoas com deficiência intelectual e múltipla recebendo, em média, os menores salários. Também são essas categorias que enfrentam maiores índices de rotatividade e menor estabilidade.
Ao olhar para o território paulista, o estudo aponta para a profunda concentração dos vínculos em algumas poucas regiões — especialmente nas macrorregiões de Campinas, São José dos Campos e Região Metropolitana de São Paulo. Há municípios com ampla presença de empresas obrigadas a cumprir a Lei de Cotas que, no entanto, mantêm número irrisório de contratações. A análise comparativa entre o número de pessoas com deficiência registradas no Censo de 2010 e os vínculos formais em 2021 reforça o descompasso entre presença populacional e acesso ao trabalho.
Outro ponto importante do estudo é a análise da escolaridade. A despeito da centralidade do argumento da qualificação como porta de entrada no mercado formal, a pesquisa mostra que o avanço nos níveis de escolarização não tem sido suficiente para garantir acesso e permanência em condições mais vantajosas. Mesmo entre pessoas com ensino superior, os vínculos formais não avançam de forma significativa. Há, portanto, um limite estrutural que a escolarização, isoladamente, não parece conseguir romper. Os dados sugerem que o mercado de trabalho formal ainda opera com filtros que vão além das habilidades técnicas, reproduzindo formas de exclusão que permanecem atreladas ao estigma da deficiência.
Além dos gráficos, tabelas e interpretações quantitativas, o e-book propõe um exercício crítico sobre os caminhos da política pública. Entre os entraves identificados, estão desde a subnotificação de pessoas com deficiência na RAIS — o que compromete o próprio monitoramento da Lei — até a insuficiência de fiscalização, as dificuldades de adaptação nos ambientes de trabalho e a escassez de ações articuladas entre políticas de emprego, educação e assistência. Os autores e autoras do estudo propõem a superação de uma abordagem puramente formalista, indicando a necessidade de uma agenda pública comprometida com a efetivação de direitos e a transformação de condições estruturais.
A publicação é um instrumento de análise e também de provocação. Ao oferecer um retrato detalhado e embasado da realidade do emprego formal das pessoas com deficiência em São Paulo, o livro contribui com subsídios concretos para o debate público, a formulação de políticas e a atuação de gestores, sindicatos, pesquisadores e movimentos sociais. Em tempos de retrocessos e disputas sobre a centralidade das políticas afirmativas, o e-book reafirma a urgência de dar visibilidade ao tema e repensar as estratégias de inclusão não apenas como dever legal, mas como horizonte democrático.
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