BERNARDO MELLO FRANCO
ENVIADO ESPECIAL A LISBOA
Ícone da esquerda de Portugal, o ex-presidente Mário Soares, 88, diz que a Europa só vencerá a crise com o fim das políticas de austeridade.
Ele afirma que a recessão se alastrou do sul para o norte do continente e que a saída deve ser buscada fora da receita liberal de privatizações e cortes de benefícios.
O socialista critica a chanceler alemã, Angela Merkel, e o plano do primeiro-ministro português, Pedro Passos Coelho, de vender estatais para pagar dívidas ao Banco Central Europeu e ao Fundo Monetário Internacional.
Para Soares, o governo de centro-direita de Portugal é o pior desde o 25 de Abril, data que marcou o fim da ditadura salazarista com a Revolução dos Cravos, em 1974.
Ele conversou com a Folha no início do mês, um dia depois de se reunir com a presidente Dilma Rousseff.
Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista.
Folha – Os países do sul da Europa, como Portugal, Espanha e Grécia, são os mais afetados pela crise. Como sair dela?
Mário Soares – A Europa está toda em crise. Uma crise profunda. Portugal, Espanha, Itália. Neste momento, também Holanda, Bélgica, Finlândia, Suécia.
É preciso uma grande mudança. Acabar-se com o neoliberalismo e essa situação de pagar aos mercados acima dos Estados.
Ou isso muda ou a Europa vai toda para o abismo. Eu tenho esperanças de que não vá.
Muitos protestos têm sido direcionados contra a chanceler alemã, Angela Merkel. O sr. concorda com isso?
Merkel sempre foi a favor da austeridade, dos mercados e das troicas [juntas de intervenção formadas por Banco Central Europeu, Comissão Europeia e FMI].
Agora aconteceu-lhe uma coisa horrível. As maiores exportações da Alemanha iam para o resto da Europa. Como a Europa está toda sem dinheiro, não tem mais como pagar. E a Alemanha está a afundar-se também, porque não consegue vender.
Por isso, Merkel está a mudar de opinião.
O sr. está otimista?
Estou convencido de que a Europa tem saída, como teve a América. É preciso acabar com a austeridade e produzir mais moeda. Tem que dar a manivela [incentivar o crescimento econômico], mudar completamente de política.
Por que a América saiu da crise? Porque fabrica moeda. Quando o Banco Central Europeu fabricar moeda, é evidente que tudo isso passa.
Isso não pode gerar inflação e elevar o custo social da crise?
Pode haver inflação, mas não é nada diante do que se está a passar. Houve inflação na América, mas estão a sair da crise. Nós não estamos.
Portugal é um dos países mais castigados na Europa, com a economia em recessão e o desemprego em 18%. Como o sr. vê a situação do país?
A situação portuguesa é aflitiva. Basta dizer que ontem [segunda-feira], Dia de Portugal, o presidente da República e o primeiro-ministro foram violentamente vaiados.
Todos os dias há grandes manifestações contra o governo. Toda a gente está descontente. É o pior governo desde o 25 de Abril, sem dúvida nenhuma.
Por quê?
Porque está a arrasar o Estado social. O Serviço Nacional de Saúde, que era impecável, está a ser destruído. Há milhares e milhares de desempregados.
As pessoas estão com fome, vão comer aos caixotes de lixo. Os trabalhadores estão contra o governo. E não são só eles. Os universitários, os militares, os médicos… O que é preciso mais?
Agora estão a acabar com o CTT [empresa de correios, que será privatizada]. Querem vendê-lo ao estrangeiro. Acha isso possível?
A presidente Dilma Rousseff, que o sr. chamou de camarada, quer que brasileiros comprem a TAP. O que acha disso?
Sou político. Não sou homem de negócios.
O governo português diz que as privatizações são necessárias para equilibrar as contas públicas. O sr. concorda?
Não. Isso é absolutamente falso, como, aliás, se provou em toda a América Latina. Não só na Argentina, como na Venezuela, no Peru…
Toda a América Latina é contra as privatizações. Vocês, brasileiros, conhecem bem isso.
Portugal deve ficar no euro?
Claro que deve. O Reino Unido está fora do euro e também vive uma situação muito difícil.
Portugal vai sair da crise dentro da Europa. A Grécia foi o berço da nossa civilização. Os alemães só fizeram guerras. Nós descobrimos o mundo. É muito diferente!